04/01/2011

Peste branca, a doença da miséria



Arte PB
Bacilo da tuberculose, descoberto há quase 130 anos, ainda mata 5 mil pessoas por dia no mundo.Castro Alves, José de Alencar e Álvares de Azevedo, além da destacada produção literária, apresentaram algo mais em comum: todos tiveram tuberculose, a assustadora peste branca que no século 19 se tornou conhecida como doença romântica porque idealizada em obras literárias e artísticas. Para a tuberculose não havia, então, causa definida. Ela matava, indiscriminadamente, aristocratas, boêmios e principalmente os pobres que migravam do campo para se amontoar nos cortiços das cidades inchadas pelo início da industrialização. Em 1882, Heinrich Hermann Robert Koch, médico e bacteriologista alemão, provou que o contágio era causado pelo Mycobacterium tuberculosis, a partir daí chamado bacilo de Koch. Contudo, um tratamento razoavelmente eficaz da doença precisou esperar até os anos 1950 para ser proposto. Foi quando os primeiros antibióticos específicos começaram a realmente curar algumas vítimas.
Hoje, quase 130 anos depois da descoberta que deu a Koch o Prêmio Nobel de Medicina em 1905, a tuberculose ainda é a doença infectocontagiosa que mais mata no mundo, mesmo com a existência de remédios poderosos, capazes de garantir a cura de mais de 95% de seus portadores. Todos os dias, 20 mil pessoas ficam doentes e 5 mil morrem. No Brasil, são cerca de 100 mil novos casos por ano, com 6 mil óbitos. Esses números nos colocam em 15º lugar entre os 22 países que concentram 80% de todos os registros de tuberculose no planeta.
É a doença da miséria, afirmam unanimemente os médicos. Afeta gente mal alimentada, que vive amontoada em moradias insalubres, respirando ar contaminado. Ninguém pode negar, porém, que ela também tem crescido entre a classe média e alta por causa de outras moléstias que debilitam o sistema imunológico, como a Aids.
Dispensários e preventórios
O médico Valdir Reginato, doutor em ciências e membro do Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), explica que a tuberculose afeta a população humana há milhares de anos. Pesquisas arqueológicas atuais mostram que algumas múmias, de diferentes regiões do mundo, apresentam sinais sugestivos da moléstia em seu esqueleto. Hipócrates, cinco séculos antes de Cristo, e Galeno, no século 1, já haviam feito a descrição do quadro clínico compatível com a doença. Porém, como pouco se sabia sobre o mal até a descoberta de Koch, as únicas medidas profiláticas adotadas pela medicina, até as primeiras décadas do século 20, eram quase intuitivas: boa alimentação e repouso, além do clima de montanha, uma vez que não existiam alternativas de tratamento. Essas medidas dietético-higienizantes fizeram surgir os “sanatórios”, edifícios onde os doentes com tuberculose eram isolados do convívio social, em geral situados em locais montanhosos e fora do perímetro urbano. Em São Paulo, os mais famosos foram instalados em Campos do Jordão. Na Europa, os mais luxuosos ficavam em Davos, na Suíça.
É desse tempo a Liga Brasileira contra a Tuberculose (LBT), instituição não governamental criada por intelectuais e médicos no Rio de Janeiro em 1900. A LBT desenvolveu um intenso trabalho de divulgação sobre o problema e inspirou a criação de novas ligas em outros estados. Foi, também, responsável pela criação de dispensários (clínicas de isolamento) e pela ideia de que os filhos dos tuberculosos precisavam ser separados dos pais e transferidos para locais chamados de preventórios.
Já surgira entre os médicos, então, a percepção de que a doença atingia mais intensamente as classes populares, o que reforçou o estigma da tuberculose como um “mal social”. As primeiras pesquisas realizadas nesses anos demonstraram que ela estava associada às precárias condições de vida.
Na tentativa de salvar os doentes, foram colocados em prática, nas primeiras décadas do século 20, procedimentos radicais, como operações agressivas para a extração de parte dos pulmões, que, apesar da eficácia nula, ajudaram a desenvolver algumas das modernas técnicas cirúrgicas torácicas. O pneumotórax, outro procedimento de alto risco, que consistia em injetar ar na cavidade pleural, também foi bastante utilizado. O poeta Manuel Bandeira, internado muitas vezes em sua juventude para tratar a tuberculose, é autor de um poema que expressa bem o desespero dos doentes:
Pneumotórax
Febre, hemoptise, dispneia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico.
— Diga trinta e três.
— Trinta e três... trinta e três... trinta e três...
— Respire.
..................................................................................................
— O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

A prevenção
Valdir Reginato destaca que, antes dos antibióticos, ainda na década de 1930, foram incorporadas às medidas profiláticas algumas tecnologias, como a abreugrafia e a vacina BCG. A abreugrafia, método diagnóstico rápido e barato, foi inventada pelo médico paulista Manuel Dias de Abreu e consistia em produzir cópias em miniatura de radiografias do pulmão. Por sua eficácia, foi adotada em vários países do mundo e rendeu a Abreu indicação ao Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia. Até a década de 1960 o exame era obrigatório no Brasil, entre os testes para ingresso em novos empregos.
Produzida a partir de uma cepa atenuada da Mycobacterium bovis, a vacina BCG (bacilo de Calmette e Guérin), até hoje utilizada, pode ser considerada uma das primeiras do século 20 e ainda é a única existente para prevenção da doença em crianças. Atualmente, pelo menos uma dezena de novas vacinas está em fase de ensaios clínicos nos Estados Unidos e na Europa. Os cientistas encontram dificuldades porque o bacilo da tuberculose se esconde dentro das células humanas, e as respostas imunológicas às vacinas propostas têm sido inadequadas.
No Brasil, um outro método vem recebendo atenção: o desenvolvimento de uma vacina de DNA, batizada de DNAhsp65, realizado por cientistas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade de São Paulo (USP). O professor Célio Lopes Silva, do Núcleo de Pesquisa em Tuberculose (NPT) da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, não fala sobre o assunto, porque diz ter “um contrato de sigilo com uma empresa que detém os direitos de propriedade intelectual da vacina DNAhsp65”.
Já foi noticiado, porém, que essa terapêutica atuará no interior da célula onde o bacilo fica alojado e será capaz de induzir a produção da proteína micobacteriana para estimular os linfócitos a combater a doença, sem envolver a metodologia tradicional da cepa atenuada. A dificuldade dos cientistas brasileiros tem sido criar um veículo capaz de, a um só tempo, proteger, transportar e liberar o biofármaco de forma controlada, para que o DNA não se degenere e perca seu potencial de ação. O desenvolvimento desse veículo é a parte do trabalho que cabe aos cientistas do Instituto de Química da Unicamp, onde já foi usada nanotecnologia para transportar medicamentos para o interior de organismos vivos.
Enquanto os resultados não surgem, outras práticas se fazem necessárias. Segundo Valdir Reginato, “a melhor prevenção contra a tuberculose consiste em promover políticas sociais que permitam melhoria das condições de moradia, um padrão alimentar adequado às necessidades nutricionais e ampla orientação quanto ao início dos sintomas mais comuns. Para muitos a tuberculose já é considerada doença do passado, o que é um engano. Por isso, é importante que o sistema de vigilância mantenha uma busca constante de casos suspeitos”.
O contágio
A Mycobacterium tuberculosis se divide a cada 20 horas. Esse é um período relativamente longo, quando comparado ao da multiplicação de outras bactérias, em geral de minutos. Em ambientes ventilados, o bacilo tem menos chance de proliferar. Ele resiste a desinfetantes fracos e sobrevive em estado latente por semanas, mas para se desenvolver precisa estar hospedado num organismo. “No ar ele pode ficar em suspensão durante horas, transportado nas microgotículas de saliva expelidas por espirros ou pela tosse de pessoas infectadas”, explica Reynaldo Quagliato Júnior, professor de pneumologia do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. É por isso que uma pessoa não tratada chega a infectar de 10 a 15 pessoas por ano, alerta Quagliato, sobretudo quando mora em cortiço ou favela, onde muita gente se concentra no mesmo cômodo.
Nem todo mundo, porém, que respira o bacilo fica doente. Quando a micobactéria chega aos alvéolos pulmonares pode ser destruída pelo sistema imunológico, ficar latente durante anos ou se multiplicar, o que acontece apenas em cerca de 10% a 20% dos casos. Péricles Alves Nogueira, médico e livre-docente pela Faculdade de Saúde Pública da USP, observa que um sistema de saúde bem organizado, com ênfase nos programas de atendimento à família, é a mais eficaz estratégia para reduzir os elevados índices de tuberculose do Brasil. “É uma doença de evolução e disseminação lentas”, diz. Seu período de incubação e de contágio é variável, e o portador pode ficar anos sem apresentar sintomas clínicos. Diferentemente do que acontece com a maioria das infectocontagiosas, a infecção e a manifestação da moléstia, na tuberculose, não são processos simultâneos. Muitos contaminados resistem e, dos cerca de 10% que a desenvolvem, 5% apresentam sintomas nos dois anos seguintes à infecção e os outros 5% em períodos posteriores da vida. “Cabe lembrar, no entanto, que esse risco aumenta nos casos de imunodepressão causada, por exemplo, por infecção pelo HIV (o vírus da imunodeficiência humana), sarampo, doença de Hodgkin, câncer da cabeça ou do pescoço, diabetes, mau estado geral de saúde, alcoolismo ou carências nutricionais, entre outros fatores”, diz Péricles Nogueira.
Fatores ambientais também têm peso na proliferação do mal, que é bem mais frequente em grupos como os dos moradores de rua e presidiários. Péricles Nogueira observa que, se na população normal a incidência de tuberculose é de 40 para cada 100 mil pessoas, entre presos esse número é muito maior. Um estudo de 2008 da Faculdade de Saúde Pública de São Paulo, feito com a população carcerária de Guarulhos, mostrou um cenário assustador dentro dos presídios: a tuberculose afeta cerca de 850 pessoas para cada 100 mil. Entre os agentes penitenciários o número de contaminados é de 65 para cada 100 mil, índice significativamente superior ao da média populacional.
Os sintomas
Além da tosse com expectoração constante por mais de três semanas, a pessoa acometida de tuberculose pode apresentar febre, suor noturno, perda de apetite, cansaço, falta de ar e emagrecimento rápido. Escarro sanguinolento pode caracterizar casos graves, em que o doente chega a expelir pedaços do pulmão, e exigir internação hospitalar. O diagnóstico conclusivo da tuberculose exige, além de exames de imagem, como a velha radiografia dos pulmões, o teste de escarro. A biomédica Carolina Parise, mestre em biologia molecular pela Unifesp, explica que a tuberculose humana é causada por cinco espécies de bactérias pertencentes ao gênero Mycobacterium, com algumas características semelhantes aos fungos quando cultivadas em meio líquido. “No Brasil, porém, quase a totalidade dos casos têm como agente etiológico o M. tuberculosis, conhecido como bacilo de Koch (BK)”, diz ela. As micobactérias têm a forma de um bastonete e, por isso, todas as espécies são classificadas morfologicamente como bacilos.
“O diagnóstico laboratorial é feito através da baciloscopia, exame realizado no microscópio. Outro método usado é a cultura, que permite o isolamento e a multiplicação do bacilo em meios de cultivo especiais para micobactérias”, diz. A biomédica explica que, além do escarro, podem ser usados vários outros tipos de amostras biológicas, dependendo da suspeita clínica e da forma de tuberculose investigada. Carolina Parise ressalta essa informação porque, ao contrário do que diz o senso comum, a tuberculose não é uma doença apenas pulmonar e pode afetar o sistema linfático, ossos e vísceras.
A médica Sandra Aparecida Ribeiro, do Departamento de Medicina Preventiva da Unifesp, explica que, embora em 85% dos casos a micobactéria afete o pulmão, nos demais o diagnóstico exige exames mais sofisticados. Ela esclarece também que, para que ocorra a transmissão da doença – que acontece apenas entre humanos, embora exista a tuberculose bovina –, em média são necessárias cerca de 200 horas de convívio. “Muito dificilmente alguém que esbarre num doente, por exemplo, num vagão do metrô, vai adquiri-la.” Esse é um esclarecimento importante, já que a tuberculose ainda é uma doença carregada de preconceitos e capaz de causar muito medo, embora a medicação disponível possa garantir mais de 90% de cura.
“A patogenicidade da micobactéria é baixa ao ar livre, mas isso muda quando há contatos íntimos”, insiste ela. Dos casos registrados no Brasil, 12% se relacionam a pessoas com mais de 60 anos e de 6% a 10% aos imunodeprimidos pela Aids ou outras causas. Cerca de 48% dos doentes moram na região sudeste do país, sobretudo em grandes centros urbanos, como São Paulo e Rio de Janeiro. Dados do Ministério da Saúde, atualizados até 2009, mostram que no Rio de Janeiro a moléstia afeta cerca de 75 pessoas entre 100 mil, quase o dobro da média nacional. O segundo estado com grande percentual de doentes é o Amazonas.
Tratamento gratuito e eficiente
O professor Reynaldo Quagliato explica que, no Brasil, a tuberculose é a quarta causa de morte por doença infecciosa e a primeira em pacientes com Aids. Para interromper a cadeia de transmissão e controlar a moléstia seria necessário curar pelo menos 85% das vítimas. O tratamento é feito com medicamentos diários durante seis meses, que permitem, em 90% dos casos, a cura total quando o diagnóstico é precoce. Nos últimos 30 anos, esse tratamento consistiu na combinação de três drogas. Desde o início de 2010, a elas foi acrescida uma quarta, para evitar resistência do bacilo e consequentes recaídas. Todas estão associadas num único comprimido, chamado de dose fixa combinada (DFC). Mesmo com a gratuidade da medicação, muitos pacientes deixam de tomar o remédio e de ir às consultas, restritas ao serviço público (o medicamento não é vendido em farmácias). Esse comportamento, além de tornar a doença mais resistente, leva inevitavelmente à recaída.
A medicação diminui, rapidamente, a possibilidade de o portador transmitir a doença. A partir do segundo dia, esse risco cai cerca de 90%, segundo Sandra Ribeiro. No décimo quinto dia, a possibilidade de contaminação deixa de existir e os sintomas praticamente desaparecem. Acreditando estar curados, alguns doentes não obedecem às indicações médicas e abandonam o acompanhamento e a medicação. Em alguns estados do nordeste brasileiro e no Rio de Janeiro, eles somam cerca de 13% (a média nacional é de 9%).
O Programa Nacional de Controle da Tuberculose privilegia a descentralização do atendimento para facilitar o acesso da população aos serviços e garantir as ações de controle. O doente é orientado a se apresentar nos postos de saúde pelo menos uma vez por mês. Se abandona o tratamento e a doença reincide, passa a ter de tomar a medicação na frente do agente de saúde ou do “padrinho” (alguém da família que se responsabiliza por ele). Na Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, o Programa de Controle da Tuberculose está implantado em quase 100% das Unidades Básicas de Saúde (UBS). A secretaria distribui medicamentos para mais de 7 mil pessoas, anualmente. Em 2009, foram atendidos 6.473 casos novos e feitos 1.217 retratamentos. Todas as pessoas em contato prolongado com doentes, seja domiciliarmente, seja no trabalho ou em instituições de longa permanência, como os presídios, são investigadas. Dependendo dos resultados da avaliação inicial, elas são encaminhadas para testes que darão a resposta definitiva acerca da possibilidade de contaminação. Mas não é necessário se desesperar. O drama dos tuberculosos dos romances do século 19, condenados à morte precoce, agora pode ser plenamente superado. Menos mal.

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