Governos precisam aprovar leis que criminalizem qualquer tipo de violência contra crianças e adolescentes, propõem pesquisadores em evento na USP sobre o tema O Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV) promoveu entre os dias 9 e 10 de maio o Seminário Internacional sobre Visitação Domiciliar, no auditório da Faculdade de Economia e Administração (FEA) da USP. O evento contou com a presença, na mesa de abertura, do pró-reitor de Pesquisa, professor Marco Antonio Zago, de Camila Grindler, representando o secretário estadual de Saúde, professor Guido Cerri, de Eloisa Arruda, secretária da Justiça e Defesa da Cidadania de São Paulo, de Nancy Cardia, coordenadora-adjunta do NEV, e de Paulo Sergio Pinheiro, pesquisador do NEV.
O seminário teve a presença de profissionais envolvidos em reconhecidos e bem avaliados programas de visitação domiciliar e, também, de pesquisadores acadêmicos com extensa experiência sobre o tema, que discutiram caminhos alternativos para enfrentar os principais desafios que emergem quando se trabalha com famílias em situação de grande vulnerabilidade, tais como violência familiar, abuso de substâncias e problemas mentais ou rebaixamento intelectual entre os cuidadores. Os desafios são ainda mais acentuados quando as visitas são realizadas por paraprofissionais e não por profissionais como, por exemplo, enfermeiras, que asseguram a continuidade, no programa, das famílias-alvo.
“O seminário tem como papel sensibilizar e aumentar a consciência sobre a importância da prevenção primária para os maus-tratos contra a criança, ao reunir diferentes grupos que trabalham na promoção da primeira infância, principalmente em países onde a violência comunitária ainda permanece crônica”, disse Nancy Cardia, organizadora do evento.
Para Camila Grindler, qualquer movimento que se faça em relação à questão da violência em crianças é muito importante porque a violência faz mal para todos, inclusive para o sistema de saúde universal, o SUS. “Os problemas acarretados pela violência sobrecarregam o SUS. Precisamos capacitar os profissionais de saúde que lidam com essas questões.”
Camila prometeu montar uma política de saúde pública eficaz para o combate de todas as formas de violência doméstica contra crianças e adolescentes, que atenda aos 645 municípios do Estado de São Paulo.
Direitos – A palestra de abertura ficou por conta do professor Paulo Sérgio Pinheiro, responsável pelo Relatório Mundial sobre a Violência contra Crianças e Adolescentes, produzido pela Organização das Nações Unidas (ONU).
Segundo Pinheiro, esse estudo é o primeiro levantamento exaustivo feito no mundo sobre violência contra crianças e adolescentes. “O estudo reflete a condição das crianças e adolescentes como titulares de direitos, assim como o direito de expressar sua opinião sobre todos os assuntos que os afetam e que lhes são devidos”, ressaltou.
O estudo traz como mensagem principal que nenhuma forma de violência contra as crianças e adolescentes se justifica e toda violência pode ser prevenida. Revela também que, em todas as regiões, em absoluta contradição com as obrigações dos Estados que dizem respeito aos direitos humanos e às necessidades de desenvolvimento das crianças e adolescentes, muitas formas de violência contra a infância seguem sendo legais, autorizadas pelo Estado e socialmente aprovadas.
Pinheiro afirma ainda que o estudo pretende marcar definitivamente um ponto de inflexão mundial: a justificativa da violência contra crianças e adolescentes é aceita como tradição e disfarçada de disciplina.
Sobre a questão da visitação, Pinheiro disse que essa prática promove a prevenção e procura evitar vários problemas no futuro. “Fazer visitação, podemos dizer, é um investimento especialmente em famílias de risco, que necessitam de maior apoio. Na verdade, não é somente para responder às necessidades da criança de tenra idade, e sim investir no futuro dela.”
No relatório da ONU, Pinheiro comenta que apenas 29 países no mundo todo, de um total de 192, possuem lei proibindo todo e qualquer tipo de violência contra as crianças, inclusive castigo corporal dentro das escolas. Na América Latina, de 35 países, apenas três estão “no quadro de honra” – Costa Rica, Uruguai e Venezuela. “O Brasil será um dos próximos, pois acaba de ser enviado um projeto de lei sobre o tema para ser votado”, esclarece o pesquisador.
Outro ponto levantado é a necessidade de os países terem um local de coordenação das políticas da primeira infância, para que não sejam relegadas à última instância. O estudo mostra ainda a necessidade de se buscar informações confiáveis. E, quando a violência ocorre, é preciso ter mecanismos de alerta precoce. “A criança precisa contar com mecanismos independentes para que possa reclamar do que aconteceu com ela sem constrangimento.”
Pinheiro fez a ressalva de que um ponto sempre esquecido e que o relatório ressalta é dar voz ativa às crianças. “Os Estados, de forma geral, têm medo de ouvi-las. Todo projeto de lei, para ser criado, precisa ouvir as crianças e adolescentes”, defendeu Pinheiro.
Prevenção – Hoje em dia algumas evidências científicas, em relação aos programas de prevenção primária da violência, mostram que estes ajudam a impedir que a violência venha a ocorrer.
Nancy Cardia disse que os programas que têm se revelado ao longo de décadas como os mais bem-sucedidos comprovadamente são os que trabalham com crianças de 0 a 3 anos de idade e seus pais. “São os cuidadores em geral que vão permitir que essa criança tenha um desenvolvimento saudável e impedir que elas sejam vítimas de acidentes e maus-tratos. A vitimização de crianças pelos maus-tratos ao longo desse período é crucial para o desenvolvimento saudável da criança, prevenindo a violência 10 ou 20 anos depois”, explica.
O Núcleo de Estudos da Violência tem se debruçado sobre esse tema porque três fatos são negligenciados no Brasil, disse Nancy. Primeiro, a importância do desenvolvimento infantil nesse estágio etário. Em segundo lugar está a questão da invisibilidade da violência e maus-tratos contra a criança. O terceiro ponto trata da questão da prevenção primária.
Segundo Nancy, não adianta ficar investindo somente em polícia, armamento e prisão. É preciso dar às crianças que estão chegando ao mundo uma condição mínima de sobrevivência digna. Elas devem ter, por exemplo, uma família que seja realmente um ponto de referência positiva. “Quando se tem uma família em que a criança sabe que conta com apoio, sabe que é protegida, que é amada, por mais que estejam acontecendo coisas muito difíceis fora do ambiente familiar, é nesse núcleo familiar que ela vai encontrar estímulo para resistir ao que está acontecendo lá fora.”
O NEV vem desenvolvendo uma experiência de assistência domiciliar desde 2006. É o Programa Infância Saudável. Renato Alves, pesquisador e coordenador do programa, conta que a ideia é desenvolver metodologia para a promoção do desenvolvimento saudável da criança e do adolescente. Um pré-piloto do programa foi realizado no bairro de Heliópolis, em São Paulo, e agora acontece no Jardim Angela, também na capital paulista.
Segundo Alves, são visitas domiciliares acompanhando meninas adolescentes grávidas até os dois anos de idade do bebê. “Além disso, treinamos mulheres da comunidade que são mães para acompanhar essas meninas.”
O Programa Infância Saudável faz duas visitas domiciliares semanais e uma atividade em grupo mensal. Os temas trabalhados dão ênfase ao acesso aos direitos das crianças e adolescentes, promovem o desenvolvimento infantil e previnem a violência. “Nosso objetivo foi construir uma metodologia que já está impressa e possa ser replicada e virar política pública. Agora estamos na fase do teste em campo.”
O programa também visa a treinar paraprofissionais mulheres, na faixa dos 30 anos, que sejam mães e que possam exercer o papel de acompanhar o desenvolvimento da criança ensinando desde regras básicas de nutrição, cuidados, prevenção de acidentes, até explicando para a menina-mãe o que acontece nos diferentes estágios do desenvolvimento da criança, “ajudando-as a identificar a presença da depressão pós-parto, que no caso das adolescentes parece algo epidêmico”.
Alves analisa o programa positivamente, pois as meninas-mães voltaram a estudar, começam a pensar num planejamento de vida levando em consideração a criança, aprendem a ter mais vínculo saudável com o bebê e maneiras de estimular o seu desenvolvimento. “O estudo também comprova a importância da visitação para uma criança bem desenvolvida a posteriori.”
Há poucas políticas públicas voltadas para o direito da criança entre o nascimento e 5 anos de idade, e também para as mães adolescentes. “O que fazer com essas jovens grávidas?”, questiona Alves. Para ele, é preciso vê-las como um sujeito em desenvolvimento, que merece atenção especializada, principalmente porque a maior concentração delas encontra-se no grupo de maior vulnerabilidade social.
IZABEL LEÃO
Visitação domiciliar em discussão
O Seminário Internacional sobre Visitação Domiciliar reuniu 30 especialistas nacionais e internacionais. Cassie Landers, da Universidade Columbia, e Deborah Daro, da Universidade de Chicago, ambas nos Estados Unidos, trataram, no painel “A Conexão entre Investimento no Desenvolvimento durante a Primeira Infância e a Prevenção à Violência”, da importância de se investir na primeira infância como forma de prevenir a violência.Cassie afirmou que a neurociência comprova que a arquitetura do cérebro se dá principalmente na fase da gestação, onde se constituem as habilidades mais complexas. Por isso, prevenir a violência nessa fase é importantíssimo para uma vida saudável. “Programas de visitação devem ser balanceados com cuidados e suportes estendidos aos cuidadores. A intervenção precoce traz resultados mais favoráveis do que feita tardiamente”, destacou.
Deborah Daro concordou com Cassie. Para ela, a intervenção precoce faz a diferença. “Toda criança pode superar os riscos da violência se tiver fatores de proteção que a envolvam. As políticas públicas precisam levar em consideração a primeira infância. Se não pensarmos nessas políticas a partir dessa faixa etária, estaremos fadados ao fracasso.”
Uma experiência do Chile, intitulada Programa Chile Cresce Contigo, trazida pela coordenadora Cecília Moraga, e umado Peru, do Ministério da Mulher, apresentada pela diretora executiva Milagros Rios, trataram sobre a violência doméstica nos dois países e apresentaram propostas de como se trabalhar com paraprofissionais.
O treinamento dos paraprofissionais foi abordado por Jon Kofmarcher, do Erikson Institute, de Chicago, e por Ariela Simonshon, da Pontifícia Universidade Católica do Chile. Ambos apresentaram experiências bem-sucedidas em seus países sobre como se deve fazer a formação desses profissionais para poderem atuar com segurança e garantia de um bom trabalho.
O painel “Os Quatro Desafios para a Visitação Domiciliar: Violência Doméstica, Doenças Mentais, Abuso de Substâncias, Rebaixamento Mental” tratou dos problemas graves que se encontram no curso da visitação e que podem interromper ou afetar a qualidade da visitação: violência doméstica entre parceiros ou cuidadores, problemas de saúde mental muito frequentes, abuso de substâncias e rebaixamento mental.
Darius Tandon, professor da Universidade John Hopkins, dos Estados Unidos, com um vasto estudo nesse setor, tratou da depressão pós-parto e como ela intervém no processo de visitação e violência na primeira infância.
A avaliação científica dos programas de visitação também esteve na pauta da discussão. Nancy Cardia, do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, observou que a ineficácia do investimento público está ligada diretamente à falta de avaliação dos programas. Segundo ela, primeiramente se investe, para depois saber se deu certo ou não, sempre partindo para uma nova experiência. “Gasta-se dinheiro sem aprender nada”, refletiu Nancy Cardia.
Jornal da USP
http://espaber.uspnet.usp.br/jorusp/
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