O Estatuto da Criança e do Adolescente chega aos 21 anos com ações fragmentadas. Embora a legislação garanta direitos e proteção integral, na prática, não é o que ocorre. Especialistas ouvidos pelo Diário defendem sistema estruturado da rede de serviços e políticas públicas integradas e contínuas.
"O poder público ainda não conseguiu. Mas também se trata de uma mudança cultural da sociedade", criticou a gerente executiva de Programas e Projetos da Fundação Abrinq/Save The Children, Denise Cesário. Segundo ela, tramitam no Congresso Nacional projetos de lei para alteração do ECA, quando, na realidade, ainda não se implementou o que o estatuto preconiza.
"O poder público ainda não conseguiu. Mas também se trata de uma mudança cultural da sociedade", criticou a gerente executiva de Programas e Projetos da Fundação Abrinq/Save The Children, Denise Cesário. Segundo ela, tramitam no Congresso Nacional projetos de lei para alteração do ECA, quando, na realidade, ainda não se implementou o que o estatuto preconiza.
Para a gerente, há necessidade de políticas públicas de qualidade e continuidade para fazer a lei se tornar eficaz. Ou seja, mais investimentos na infraestrutura do sistema de garantia. "É preciso capacitar os profissionais e equipar os órgãos de defesa, como os conselhos tutelares", defendeu.
O presidente da Comissão de Direitos Infanto-Juvenis da Ordem dos Advogados de São Paulo, Ricardo de Moraes Cabezón, é mais incisivo. "Falta uma padronização dos procedimentos para afastar esses jovens das ruas. É um faz-de-conta", afirmou. O advogado ainda ressaltou que se banalizam discussões sérias como se fossem situações simples, como, por exemplo, com a redução da maioridade penal.
Opinião compartilhada por Marcelo Caran, especialista em políticas públicas para infância e juventude da Fundação Projeto Travessia, de São Paulo. Para retirar a criança da situação de rua, segundo Caran, há necessidade da integração das várias áreas, como Saúde, Educação, habitação e saneamento básico. Caran explicou que esse trabalho pode levar até um ano. "Por dia, dez vão para as ruas. Não dá para tratarmos o problema de forma fragmentada", avaliou.
Para o vice-presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, Ariel de Castro Alves, é preciso garantir educação. "A partir dos 14 anos, o adolescente pode ser aprendiz, mas, para isso, deve ter estudo e preparo para ser treinado em uma empresa ou órgão público sério, com condição de ensinar uma profissão ao jovem", destacou.
Na pele
O menino magro e franzino com quem a equipe do Diário conversou na tarde de ontem, na Fundação Criança de São Bernardo, é prova real de que se leva tempo para tirar um jovem da rua. Ele começou a vender balas nos semáforos aos 14 anos. "Precisava pagar as contas da minha casa, pois meu pai não conseguia dinheiro como catador", afirmou.
Hoje, aos 16, ele faz parte do Projeto Contando Histórias, que paga bolsa mensal de R$ 200 para o jovem atuar em bibliotecas e escolas municipais. Ele também voltou a estudar e a sonhar. "Sei que é difícil, mas quero ser médico".
Conselheiro tutelar recebe até R$ 3,8 mil por mês na região
Os Conselhos Tutelares da região têm 65 conselheiros eleitos para mandatos de três anos, que se encerram no fim de 2011. Eles são encarregados de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente. Recebem salário de até R$ 3.800, caso dos 15 conselheiros de São Bernardo, divididos em três conselhos.
Em Santo André e Diadema são duas unidades, com cinco conselheiros cada e salários de R$ 2.000 e R$ 2.642, respectivamente. São Caetano, Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra têm cinco conselheiros cada. Em São Caetano, eles ganham R$ 1.400 e, em Mauá, R$ 1.300. Ribeirão e Rio Grande não informaram.
Apesar do cargo remunerado, os conselheiros ainda deixam a desejar, principalmente no que diz respeito ao trabalho infantil. Meninos-placa, vendedores e rodinhos estão pelas ruas para quem quiser ver, mas o conselho age somente se recebe denúncia.
A abordagem de rua só existe em Santo André, São Bernardo e Diadema, o que dificulta a chegada de denúncias em outras cidades. E assim as crianças seguem nas ruas.
Mãe explora cinco filhos em farol de Diadema
As seis crianças são pequenas. Têm entre 8 e 15 anos, calçam chinelos de dedo e roupas rasgadas. Seus rostos estão sujos, mas os lábios sorriem. "Isso daqui é a maior brincadeira, tia!", disse um deles. A diversão corre o risco de terminar em tragédia: eles vendem balas na Avenida Fábio Eduardo Ramos Esquível, em Diadema, e podem ser atropelados pelos carros que passam em alta velocidade quando o semáforo está verde.
"Tenho medo de ir no banheiro e, quando voltar, algum maluco ter passado em cima deles", disse a mãe de cinco dos pequenos e tia da sexta, Sonia, 36, que não informou o sobrenome. Ela estudou até a quarta série do Ensino Fundamental e está desempregada. Tem oito filhos para criar, com idades entre 4 e 19 anos.
Sonia admitiu que as crianças sustentam a casa, embora ela também venda balas. "As pessoas têm dó deles e dão mais dinheiro. Enquanto vendo dez (balas), elas vendem 30", garantiu. A família consegue ganhar cerca de R$ 120 por dia.
Conforme o artigo 60 do Estatuto da Criança e do Adolescente, crianças não podem trabalhar: "É proibido qualquer trabalho a menores de 16 anos de idade, salvo na condição de aprendiz, a partir de 14 anos", diz.
Sonia conhece a lei, mas alegou não ter opção. "Meus meninos passariam fome se a gente não viesse, não tem jeito", lamentou.
O filho mais velho de Sonia, que tem 19 anos, que poderia ajudá-la a manter a casa, também está desempregado. "É difícil porque ele largou a escola", afirmou.
A família vive no Sítio Joaninha. Sonia garantiu que leva os filhos para os faróis apenas fora do horário da escola e durante as férias. "Tenho que manter eles estudando porque a gente ganha Bolsa-Família". São R$ 160 por mês, dinheiro que não dá para alimentar as nove bocas famintas da casa.
Atendimento
O Conselho Tutelar da cidade afirmou não ter conhecimento do caso.
Já o projeto Meninos e Meninas de Rua, responsável pela abordagem desse tipo de caso, afirmou que desde maio atua junto à família de forma a atendê-la na rede de proteção da cidade.
"Não podemos tirar essas crianças das ruas de um dia para o outro. Caso contrário, elas irão para outro ponto ou cidade, e o trabalho foi perdido", disse o coordenador do projeto em Diadema, José Maria Oliveira Viana.
Ele explicou que existe a possibilidade de inserir as crianças no Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, do governo federal, o que aumentaria a renda da família e proporcionaria atividades para manter as crianças longe das ruas. "Mas essa mãe precisa receber orientação também. Ela deve entender que é responsável pelas crianças e que, como tal, deve garantir a elas o direito de serem crianças", afirmou.
‘A rua machuca e deixa cicatrizes'
Com olhar diferenciado e sensível, o ex-menino de rua Antonio Leonardo Duarte Pereira, que colhia e vendia cajus em Juazeiro do Norte, no Ceará, aos 7 anos, e migrou para São Bernardo em 1992, é exemplo de superação. "A rua machuca, deixa cicatrizes", revelou, embora ali tenha conhecido o retrato fiel e cru da desigualdade social.
Hoje, seu nome profissional é Leonardo Duarte, 31, fotógrafo com trabalhos premiados no País e educador social por essência. Criança, trocou a bola de futebol e a escola pelo trabalho precoce nas ruas. "A necessidade me levou para esse caminho", recorda-se o filho de dona Maria do Socorro, 60, e do pai, falecido, José Saturnino Filho, com quem teve menos convívio pelo fato de ter deixado a família - Leonardo e mais três irmãos, ainda pequenos, em solo cearense.
Sem religião e devoto de Deus, o pequeno Leonardo aproveitava do canto dos romeiros que passavam em frente de sua casa para vender cajus. Era ouvir o "Bendito louvado seja", cântico católico, para se postar na calçada. No terreno, a família Duarte cultivava 25 pés da fruta.
"Tudo que ganhava sempre entregava para a minha mãe. Sempre foi assim", afirmou Leonardo, que ainda trabalhou informalmente como guardador de veículos em churrascaria e pizzaria. "Posso pastorar o seu carro?", perguntava o pequeno, de corpo franzino.
E foi dentro de um automóvel Gol, carregado por caminhão cegonheira, que a família Duarte chegou em São Bernardo. Era o ano de 1992. "A viagem durou cinco dias", lembra-se. Na cidade grande, trazia um sonho na pequena bagagem de mão: "Encontrar uma bicicleta no lixo". Afinal, era o que um amigo havia comentado.
Por duas semanas, Leonardo manteve a ilusão em alta. O patrão de uma das irmãs emprestara um apartamento, no bairro Demarchi, inclusive com "elevador e piscina". Depois, a realidade: casa simples e aluguel no Jardim Silvina, região da periferia de São Bernardo.
Ali, começara sua peregrinação pelas ruas. Primeiramente, batia de porta em porta para pedir alimentos. Ao contrário do cearense solidário, encontrou uma população mais sisuda e desconfiada. O jeito foi partir para outra investida em troca de dinheiro.
Foi camelô por cerca de três dias, aos 13 anos, ao vender alho e chinelo, combinação esquisita, na Praça Lauro Gomes. Dias depois, seu novo desafio foi uma banca de jornal. "Lia bastante nessa época", afirmou Leonardo, autodidata e que aprendeu a ler e escrever sozinho. No Nordeste, só cursou a primeira série por três meses. Ali, comprava colher de manteiga e uma xícara de óleo.
Torcedor do Corinthians, Flamengo e Ceará, o ex-menino de rua cearense cresceu e perdeu o sotaque por proteção. "Fui discriminado", acrescentou. Hoje, é educador social no Projeto Meninos e Meninas de Rua. Ex-fotógrafo de jornais paulistas conhecidos, contou um segredo. "Recebi meu primeiro holerite dia 28 de junho, aos 31 anos de idade", afirmou, o mais recente trabalhador brasileiro registrado em carteira.
Diario do Grande ABC
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