28/07/2012

A polémica sobre a ocupação do Lgo. São Francisco

Nota do XI de Agosto e da Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama em resposta ao artigo "Os donos do Largo de São Francisco", publicado na Folha de S. Paulo 2 Jul 11, 2012 (originalmente publicado em 28 de junho)


O artigo “ Os donos do largo de São Francisco” , publicado na coluna tendências e debates da Folha de São Paulo, no dia 26 de junho, expõe uma realidade pouco explorada pelos meios midiáticos: a população em situação de rua e a questão urbana.

A abordagem do problema, no entanto, é equivocada. Trata-se de uma percepção superficial da realidade, visto que alguns dos argumentos mostram profundo desconhecimento da realidade que circunda a população em situação de rua. Parte, ainda, de pressupostos poucos plausíveis para a abordagem da questão, o que impossibilita formular uma solução eficaz por essa via, apesar de se coadunar com os cânones do senso comum sobre a questão.

Em resumo, o artigo critica a apropriação de um espaço público da região central por pessoas “sem propriedade”. Por viverem próximos ao Largo São Francisco (como também de outros pontos históricos da região), estariam gerando uma situação de imundice e de risco aos transeuntes, por causa do uso de drogas e violência.

Além disso, chama de “decisão lógica” a ocupação do centro de São Paulo pelos moradores de rua, haja vista os presentes motivos: (1) Proteção oferecida a esses devido à proximidade entre o Largo e a Secretaria de Segurança Pública, (2) limpeza diária com água fornecida pela prefeitura, (3) Fornecimento de comida pelas instituições de caridade.

A análise peca logo de início: parte da premissa de que os moradores de rua lá estão por opção. Desse ponto de vista, a ocupação do Largo São Francisco teria sido fruto de uma longa e ponderada reflexão cujo objetivo era escolher, dentre uma miríade de potenciais lares, aquele que melhor satisfizesse as demandas do “comprador”. Nada muito diferente, portanto, do processo por meio do qual se escolheria entre um apartamento nos Jardins ou no Morumbi.

O que fica evidente nesse raciocínio é uma falta de visão que beira o cinismo. Não se mora na rua, em regra, por preferência pessoal, mas antes na tentativa de sobreviver, ainda que no limiar da subsistência.

Ainda, diante da “situação inaceitável” exposta pelo artigo, este propõe que cessem as doações de alimentos e outras às pessoas em situação de rua, bem como que essas sejam encaminhadas para determinados serviços estatais, a fim de “desmobilizar massas que, sem conhecerem as alternativas que a rede de atendimento social oferece acaba tornando seu o que deveria ser de todos”.

Pois bem, o artigo tem razão em afirmar que o contingente de pessoas em situação de rua é uma “situação inaceitável”. Porém, não pelos motivos nele expostos, sobretudo se analisarmos a perspectiva de vulnerabilidade relacionada à condição de pessoa em situação de rua. Tal condição representa violações de diversos direitos fundamentais, como o direito à moradia, à alimentação (contrariamente ao que afirma o autor, a grande maioria das pessoas em situação de rua passa fome), à saúde, à segurança e, principalmente, à dignidade humana. Tantos outros direitos que a condição em situação de rua agride, na maior parte dos casos, poderiam ser elencados para compor uma “situação inaceitável”.

No entanto, inaceitável para os autores não é a violação rotineira da cidadania de outrem que se dá escancaradamente nas ruas do centro de São Paulo e incomoda os observadores, mas sim uma apropriação do espaço público por pessoas sem propriedade: a ilustração de uma lata de lixo em frente ao largo de São Francisco que acompanha o artigo demonstra de maneira clara o que de fato é considerado problemático pelos autores.

Segue o artigo considerando uma “decisão lógica” o fato dos moradores de rua ocuparem a região central, em especial o Largo São Francisco. Tal afirmação pressupõe, erroneamente, que estar em situação de rua seja, de fato, uma escolha pessoal, muito mais do que uma consequência. Estar em situação de rua, em risco constante, pode vir a ser uma escolha; contudo, a grande maioria das pessoas que vivem na rua não deseja assim permanecer. São diversos os motivos que geram a ida à rua: desemprego, quebra de vínculos familiares, vícios, doenças.

A problemática estar na rua relaciona-se a diversos fatores estruturais, econômico-sociais, sendo, portanto, o fato de se colocar a ocupação dos espaços no centro por pessoas em situação de rua como “decisão lógica” mais um indício da superficialidade da análise realizada pelo artigo em questão.

Em geral, ainda, a maioria dos “moradores de rua”, ao contrário do que se pensa, trabalha. Porém, usualmente, sofrem discriminação por estarem em situação de rua, tendo acesso apenas a empregos informais e precários que não garantem a sua subsistência.

Muitos são acometidos de doenças mentais (esquizofrenia, depressão) ou são dependentes químicos, sem terem auxílio médico mínimo para a recuperação de sua saúde. Os serviços de saúde, por sinal, muitas vezes, recusam o tratamento, ou o fazem discriminatoriamente.

O artigo mostra a calçada do Largo São Francisco quase como uma pensão três estrelas. Em primeiro lugar, os autores pressupõem que a proximidade física com a secretaria de segurança seria fator de proteção aos moradores de rua instalados no entorno. Ora, como se explicam os massacres que ocorreram em 2004, na região do centro, com moradores de rua? Por que, então, as cenas de violência efetuada pelos próprios agentes de segurança pública contra pessoas em situação de rua (spray de pimenta, chutes, borrachadas) são tão constantes no centro, como por diversas vezes foi divulgado pela mídia e presenciado reiteradamente por alunos da própria Faculdade?

Em segundo lugar, a limpeza diária fornecida pela prefeitura, através de caminhões de água e serviços da limpeza urbana, é realizada, inúmeras vezes, de forma agressiva. Em geral, a água é jogada sobre os pertences, cobertores e por vezes até sobre os moradores do local. O caminhão de limpeza urbana também recolhe periodicamente pertences da população de rua que ali se instala (e o faz em todas as regiões da cidade), a despeito dos protestos dessa nesse tipo de operação conhecida como “rapa”. Tal situação também é presenciada cotidianamente pelos alunos da Faculdade de Direito.

O terceiro elemento, doações de alimentos e outros, ainda que ocorra com frequência, nem sempre é suficiente para suprir a demanda. Não são poucos os moradores de rua que não possuem agasalho em tempo frio ou os que usam papelão para se cobrir, fato notável por qualquer transeunte atento do centro.

Por fim, a menção aos albergues como possível solução do problema e o fato desses não serem utilizados por um “desconhecimento” da população em situação de rua são uma falácia. A rede de atendimento à população em situação de rua é de geral conhecimento de seus possíveis usuários. Eles sabem onde tais serviços se localizam por uma questão de sobrevivência.

Contudo, as péssimas condições desses estabelecimentos (vide o albergue Pedroso, da região central, com interdição já declarada pela prefeitura, no qual circulam ratos e baratas pelas mesas do refeitório durante o período das refeições) contribuem para que os usuários prefiram a rua (e seus riscos) do que valer-se desses serviços.

A preocupação dos autores em declarar a “situação inaceitável” parece focar-se muito mais em permitir uma retirada massiva das pessoas em situação de rua do centro do que, de fato, com as violações que lhe são acometidas por estarem em situação de rua.

Talvez, essa situação seria mais confortável se não à vista na área central, e afastada para a periferia. Apesar de o artigo negar, os argumentos se mostram higienistas: encaixam-se num modelo de revitalização urbana que pressupõe exclusão daqueles que “sujam” o centro. Um “ismo” aqui mais do que cabível, necessário, sobretudo se analisado como uma manifestação de uma lógica voltada para a remodelação do centro urbano de São Paulo.

Sendo assim, a Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama e o Centro Acadêmico XI de Agosto, assim como as demais entidades abaixo assinadas, colocam-se a favor de uma política pública de inclusão que vise a transformar este problema estrutural por meio da efetivação de direitos.



Centro Acadêmico XI de Agosto

Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama

Movimento Nacional da População de Rua - MNPR

Núcleo de Direito à Cidade

Ouvidoria da Defensoria Pública de São Paulo

Associação dos Cristãos pela Abolição da Tortura

Departamento Jurídico XI de Agosto

Centro Gaspar Garcia

Rede Rua

Jornal “o Treicheiro”

Movimento Nacional de Direitos Humanos - Regional São Paulo

Coletivo Avante!

Grupo de Estudos em Direito e Sexualidade - GEDS

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