16/08/2024

Noite de Acolhimento, Manhã de Abandono: O Ciclo de Sofrimento nos Abrigos


A gestão do tempo nos centros de acolhida e a importância de um manejo técnico adequado para a dignidade e recuperação dos acolhidos.

A questão da população em situação de rua sempre foi cercada por estigmas e preconceitos. Nos debates públicos, é comum ouvir vozes que defendem medidas que, sob a fachada de “ordem”, acabam criminalizando o ócio e o descanso desses indivíduos. Mas qual é o impacto dessa abordagem na vida das pessoas que, muitas vezes, só encontram no sono uma forma de fugir da realidade?


Recentemente, participei de uma discussão técnica com especialistas e membros da prefeitura sobre o acolhimento dessas pessoas. Um ponto de vista que emergiu me chamou a atenção: a indignação pelo fato de alguns acolhidos estarem dormindo até as 10 ou 11 horas da manhã. Essa visão, embora possa parecer lógica para alguns, ignora a complexidade da vivência na rua e o desgaste emocional que ela impõe.

Como alguém que já esteve nessa posição, posso afirmar que a rua não perdoa. Acordar às 6 horas da manhã e ser jogado novamente à indiferença do mundo, sem rumo ou perspectiva, gera um sentimento de vazio que poucos conseguem imaginar. A vida na rua é um ciclo de exaustão emocional. E o que resta a muitos, além de vagar pelas praças e, por vezes, recorrer ao uso abusivo de álcool e outras drogas para anestesiar a dor?

Essa prática de expulsar milhares de pessoas acolhidas na rede de assistência social às 7 horas da manhã, todos os dias, é uma das razões pelas quais a população paulistana não percebe intuitivamente a ampliação do número de acolhimentos. Afinal, para a visão da maioria, essas pessoas sempre estão na rua. Isso ocorre porque, ao anoitecer, quando muitos olhares estão distraídos, as pessoas são acolhidas. No entanto, às 7 horas da manhã, elas são novamente jogadas nas ruas, e o que o cidadão comum vê é a permanência da população de rua nos mesmos lugares. A percepção de melhora é praticamente nula.

Essa situação não só prejudica a imagem dos serviços de acolhimento, mas também dificulta a adesão das pessoas em situação de rua à rede de assistência social. É claro que é melhor que essas pessoas estejam dentro de um acolhimento do que nas calçadas, expostas aos riscos e ao uso abusivo de álcool e outras drogas.

Minha profunda indignação se dirige a esse modelo de acolhimento de 16 horas, que considero uma verdadeira abominação. Embora se possa argumentar que, em vez de deixar essas pessoas dormindo, deveriam ser oferecidas atividades socioeducativas, a verdade é que muitas dessas atividades acabam por infantilizar os acolhidos com propostas como pintura e artesanato e outras semelhantes. Além disso, sabemos que é impossível ocupar diversas horas seguidas com essas atividades. É crucial permitir que o tempo de descanso seja respeitado, mas com um manejo técnico adequado, proporcionando inicialmente que as pessoas recuperem alguma autonomia na gestão de seus horários.

O respeito ao direito de decidir a hora de acordar, dormir e comer é algo que, embora limitado em um serviço de acolhimento, não deve ser completamente negado. Sabemos que a verdadeira autonomia plena só é possível em uma residência própria, onde cada um pode organizar sua rotina da forma que achar melhor. Ainda assim, é essencial que busquemos oferecer aos usuários algum grau dessa autonomia, sem criminalizar a prática do descanso. É necessário atuar para que as pessoas gradualmente voltem a aderir a uma rotina comum, onde façam seus próprios horários para buscar emprego ou outras atividades.

É importante também desarmar o argumento comum de que essas pessoas seriam "vagabundos" por não acordarem cedo como qualquer trabalhador. Precisamos entender que muitas dessas pessoas estão em processo de reconstrução de vida. Forçá-las a seguir uma rotina rígida de trabalho logo de início pode ser prejudicial. Antes de tudo, é necessário que essas pessoas passem por uma série de reconstruções emocionais e comportamentais. Só então estarão preparadas para, gradualmente, se reintegrar ao mercado de trabalho e à sociedade de forma saudável e sustentável.

É urgente que se repense a abordagem nos centros de acolhida. Expulsar essas pessoas às sete horas da manhã, todos os dias, sem necessidade, é condená-las a um ciclo de sofrimento e exclusão. E talvez resida aí uma das principais razões pelas quais muitos usuários não aderem ou rejeitam as regras dos centros de acolhida. Se nem ao menos lhes é permitido descansar, dormir um pouco mais tarde quando necessário, imagine o que dizer das demais exigências. O manejo técnico adequado, realizado por assistentes sociais, psicólogos e pedagogos capacitados, pode transformar vidas. E se queremos que essas pessoas aceitem a rede de assistência social, é preciso que essa rede ofereça mais do que um teto e uma cama – deve oferecer compreensão, dignidade e respeito, especialmente em momentos em que a sociedade celebra a solidariedade e o acolhimento.

Reprodução autorizada com citação da fonte


Conforme deliberado na última assembleia, a plenária de setembro será substituída por um ato público no dia 11 de setembro




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